Arquivo da tag: ficção

Retorno

Essas noites com cheiro de fumaça me deixam melancólica, acho. Creio que perdi a entrada, o retorno fica muito longe daqui. É uma chatice viver numa cidade sem caminhos alternativos. Queria viadutos por cima de tudo. A gente vive dando voltas. Girando em torno das mesmas histórias, amizades, namoros, tesourinhas. É muito troca-troca pro meu gosto. É muita W3 pra minha L2. Só queria um retorno próximo. Conhecer gente desconhecida, diferente, nova mesmo.

É muita seca pra pouca saliva. Muito papo furado pra pouca paciência. É falta de vontade demais pra muito trabalho. Acontece. “Uma hora acaba”, “Passa rápido, você vai ver”. Eu não quero que passe num piscar de olhos. Quero que passe direito. Mas a gente não controla nem nossa boca, quem dirá a vida. Queria uma cerveja, mas preciso achar o rumo.

Essa poeira no ar me deixa um pouco árida demais. E esse retorno que não chega? Já tá tudo vermelho, as luzes se apagam. É Eixão demais pra minha Epia. Meu coração precisa de uma coisa diferente. Precisa de menos voltas. Essas idas e vindas me detonam por dentro e por fora. Não sei se consigo.

É sete horas da manhã demais pro meu sono adolescente. Ó o retorno. O problema é “pra onde retornar?”. Sei lá, tem que dar mais voltas pra chegar a lugar algum, ser enganada pelas ruas.

Uma hora eu chego em casa. Aí eu quero ver.

Sobre Silvia

Eu tinha muito para falar sobre Silvia, mas ela escapou. Sumiu como que levada pelo vento. Desapareceu enquanto eu voltava pra casa. Não me lembro de muita coisa dela. Só do vestido verde e sapatos brancos. Do fato de não ter acento, porque ela me falou sobre isso repetidas vezes. E também de quando ela me disse que nem todo dia a gente ganha. Falou que precisamos de dias ruins, porque senão tudo perderia a graça. Silvia sussurou coisas enquanto o rádio estava ligado e eu só me lembro disso.

Talvez ela tenha fugido com medo de que eu perguntasse alguma coisa. Porém, não me ocorreu nenhuma pergunta. Creio que ficaria ouvindo-a falar o dia todo e não questionaria nada. Nem nos nossos silêncios mais longos eu me manisfestaria. Provavelmente, ela não me conhecia tão bem quanto pensava ou talvez conhecesse demais.

Só sei que Silvia não voltou para tomar café ou passear de carro num dia ruim. Ela deve ter descido quando o sinal fechou. Quem sabe aproveitou um momento de distração de minha parte. Não sei. Só sei que sinto saudades, mesmo sem lembrar muito bem o motivo disso.

Tempos

Tínhamos um passado promissor. Mas ele queria presente e eu, futuro. Éramos opostos e isso não nos atraía, só nos jogava em direções diferentes. Eu aprendi a viver todos os tempos de uma só vez e ele ficou estacionado no tal do agora. Nos separamos e de nós só restou algumas recordações e o velho ressentimento que sempre aparece quando as coisas não terminam bem.

Um dia, muito tempo depois, nos encontramos por acaso. Conversamos por um tempo, mas não existia muita coisa a dizer. Parecíamos completos desconhecidos falando de trivialidades. Tive que pagar a conta. Era sempre eu quem fazia isso. E era triste, porque continuava querendo o melhor pra ele, mesmo depois de tudo. Ainda tínhamos um passado, mas ele insistia nessa coisa de presente e não chegava ao fim do mês. E eu continuava vivendo. Nem sempre a gente pode acreditar no que falam na televisão e esse negócio de carpe diem só funciona nos sonhos de algum escritor do século retrasado.

E lá se foi o que não era pra ser.

Lembranças

Recordo-me dos dezembros em casa de minha avó. Assim que terminavam as aulas, minha mãe nos mandava pra lá. A atmosfera era tão diferente da do resto do ano. Pode ser que pela alegria causada pela ausência de aulas ou por causa da presença dos primos queridos que vinham de outras cidades ou até mesmo por causa da promessa de uma bicicleta nova no Natal.

Tudo me parecia tão maior. Os dias eram tão mais longos. Dava pra fazer tanta coisa em 24h. Era também época de desafiar as ordens de dormir cedo. A emoção de ficar acordada até depois da meia-noite. Os filmes que nem de longe me permitiam ver.

Eram tantas pequenas alegrias ao longo dos dias. Os passeios a pé, piqueniques, jogar bola no meio da rua, desobedecer alguma ordem, transitar da casa da minha avó para a casa da minha tia, que é logo ao lado, algumas várias vezes ao dia. Tinha também a hora do video game, os lanches cheios de guloseimas, as várias idas ao boteco da esquina para comprar engordativos e coisas que dariam cáries, os jogos de vôlei no quintal ou qualquer jogo inventado, a piscina de plástico, os banhos de mangueira, as idas ao clube da cidade. Mas, principalmente, a rosquinha doce que era comprada de uma moradora da nossa rua. Creio que aquele seja o gosto da minha  infância.

Depois de tantos anos, acho que nunca mais vou me deparar com tal iguaria. Muitas foram as tentativas frustradas. Se eu fechar os olhos e me concentrar, consigo me lembrar daquele sabor e do cheiro dela ainda quente. E me vem todas as lembranças boas e até mesmo as ruins (que envolviam Maravilha Curativa nos ferimentos causados por algum tombo). Sinto saudades imensas daquilo tudo.

O Natal era sempre uma época feliz. Todos os preparativos. Os mais novos eram encarregados de tantas tarefas. Sentíamos criaturas muito importantes, pois a montagem da árvore era de nossa responsabilidade. E o que seria do Natal sem uma belíssima árvore? Logicamente não vou mentir que era feliz por conta do nascimento do menino Jesus, mas pelos presentes desejados. Ah, tanto a ceia quanto a hora de acordar, com o presente em cima dos sapatos, eram momentos muito esperados.

Creio que a véspera do Natal era a única noite em que eu queria dormir mais cedo. O problema é que a ceia só era servida depois da meia-noite, depois das preces feitas por minha tia. E era um dos únicos dias do ano em que minha mãe permitia que eu tomasse algum líquido durante a refeição. Sempre vinha alguma pessoa que eu desconhecia falar do quanto eu tinha crescido. E, geralmente, essa pessoa perguntava se eu lembrava dela. E eu dizia que não. Como poderia? Conheceu-me quando eu tinha 1 ano de idade.

Depois de toda essa alegria, vinha a hora dos presentes. Ó, coisas adoradas ou nem tanto. O grande problema vinha nos embrulhos “moles”. Roupas. Eu detestava ganhar roupas. Minha mãe era mais cuidadosa, perguntava o que eu queria.

Depois disso, era a hora de deitar. Sim, a manhã seguinte era o melhor de tudo. E acordávamos e íamos loucamente abrir os presentes no quarto dos meus pais com o maior sorriso do mundo. “Ele trouxe o que eu pedi”. Mas a bicicleta não estava no quarto. Um andar desolado até a sala e lá estava. E sem rodinhas!

E a rosquinha doce no café da manhã.  Só no ano que vem agora. E tudo parecia tão maior.

Eu tenho minhas ficções

E quero resgatá-las do fundo do baú, dos meus cadernos amarelados, da lembrança.

Transcrições

Hoje, eu estava curtindo um sono pós-almoço e peguei a piauí de dezembro pra ler. Na seção de ficção topei com um texto muito bom, resolvi passar pra cá.
O texto é “Assustada De Repente” de Lydia Davis. Vou colocar aqui a parte que mais me impressionou e que mais tem a ver com o meu momento:

“A Lagarta
Acho uma pequena lagarta na minha cama de manhã. Não há nenhuma janela boa para eu jogar a lagarta, e não esmago nem mato nenhum ser vivo, a menos que seja inevitável. Então me dou ao trabalho de levar pela escada essa lagartinha fina, escura, sem pêlos, com a intenção de ir até o jardim. Não é uma lagarta de mariposa, embora seja do mesmo tamanho. Não arqueia o corpo no meio, mas caminha reta, firme, com os seus muitos pares de pernas. Quando saio do quarto, ela já está andando bem depressa sobre as protuberâncias da minha mão.

Mas no meio da escada, ela some – minha mão está vazia, dos dois lados. A lagarta deve ter se soltado e caído. Não consigo ver a lagarta. O vão da escada está escuro e os degraus são pintados de marrom-escuro. Eu podia pegar uma lanterna e procurar essa coisinha para salvar a sua vida. Mas não vou chegar a esse ponto – ela vai ter que se virar sozinha. Porém, como é que ela vai conseguir chegar à porta dos fundos e sair para o jardim?

Vou cuidar da minha vida. Acho que esqueci a lagarta, mas não esqueci. Agora, toda vez que subo ou desço a escada, evito o lado de cá dos degraus. Tenho certeza de que a lagarta está ali, tentando descer.

Enfim, desisto. Pego a lanterna. O problema agora é que os degraus estão muito sujos. Não limpo a escada porque ninguém vê os degraus aqui no escuro. E a lagarta é, ou era, muito pequena. Sob o facho de luz da lanterna, muita coisa se parece com ela – uma lasquinha bem fina de madeira ou um pedaço de linha grossa. Mas quando eu toco, não se mexem. Procuro em todos os degraus daquele lado da escada e depois do outro lado também. A gente sempre acaba apegado a qualquer ser vivo, depois que tenta ajudá-lo. Mas a lagarta não está ali. Tem muita poeira e muitos pêlos de cachorro nos degraus. A poeira pode ter colado o corpinho da lagarta e aí ficou difícil para ela se movimentar, ou pelo menos ficou difícil ir na direção que queria. Pode ter até secado a lagarta toda. Mas, afinal, por que ela haveria de descer em vez de subir? Não olhei no patamar acima do local onde ela sumiu. Não vou chegar a esse ponto.

Volto para o meu trabalho. Então começo a esquecer a lagarta. Esqueço durante uma hora, até eu ter de descer a escada de novo. Dessa vez, vejo que lá num dos degraus tem alguma coisa exatamente do mesmo tamanho, formato e cor. Mas está seco e achatado. Não pode ser ela, de jeito nenhum. Deve ser uma folhinha de pinheiro ou um pedaço de alguma outra planta.

Quando volto a pensar na lagarta, percebo que me esqueci dela por várias horas. Só penso na lagarta quando subo ou desço a escada. No final das contas, ela está mesmo em algum lugar, tentando achar o caminho para uma folha verde, ou então morrendo. Mas agora eu já não me importo tanto. Em breve, tenho certeza, vou esquecer a lagarta completamente.

Mais tarde, há um cheiro desagradável de bicho pairando na escada, mas não pode ser a lagarta. Ela é pequena demais para ter algum cheiro. Agora, ela na certa já morreu. De fato, era pequena demais para que eu ficasse pensando nela a vida toda.”

É mais ou menos assim que eu funciono, tudo acaba virando uma lagarta pequenina e depois eu esqueço.