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Eu fui embora

O certo é que eu fui mesmo. Fui embora sem dar adeus, sem escrever bilhete, sem ser gentil com ninguém. Eu, que nunca fui embora de verdade, nem cogitei olhar pra trás. De nada serve se agarrar ao que não existe e só existiu de um jeito que você mesmo inventou.

Eu parti com o coração vazio, como nunca tinha ficado antes. Minha concepção de amar desse jeito vai muito além da dor suportável. Por isso, eu joguei tudo no lixo e tirei também a roupa que não me servia mais por estar impregnada de coisas mortas e sem solução. Da última vez que fui ensinar o que era o amor, terminei na sarjeta sem dinheiro, sem casa, sem coberta. Então eu nem peguei minhas coisas para não me sujar.

Eu deixei tudo no cabide, as louças desbotadas, o livros empoeirados no chão da sala. Queimei as fotos e um cachecol vermelho. Quebrei alguns discos que não ouvia mais. Deixei as meias encardidas no meio da casa com as garrafas quebradas na mesa e a dor que não era mais minha e fui.

Fui um lugar que não conhecia, mas que você não fazia parte. Porque era melhor um coração sem nada do que com você dentro. Porque as mentiras acabam e só fica mágoa. Porque a vida tem que ser melhor. Só pode ser melhor do que isso. Porque isso é o fim de tudo. E todo fim caminha pra um começo. Nem que seja assim do avesso, sem roupa, sem documento, sem sorriso, só com as mãos limpas e os cabelos um pouco bagunçados pelo vento. Porque é melhor ir do que chorar à noite. Porque eu só posso ser feliz longe daquela casa. E se não for aqui, vai ser em outro canto. Porque eu não tenho medo e você é feito disso.

Sobre Silvia

Eu tinha muito para falar sobre Silvia, mas ela escapou. Sumiu como que levada pelo vento. Desapareceu enquanto eu voltava pra casa. Não me lembro de muita coisa dela. Só do vestido verde e sapatos brancos. Do fato de não ter acento, porque ela me falou sobre isso repetidas vezes. E também de quando ela me disse que nem todo dia a gente ganha. Falou que precisamos de dias ruins, porque senão tudo perderia a graça. Silvia sussurou coisas enquanto o rádio estava ligado e eu só me lembro disso.

Talvez ela tenha fugido com medo de que eu perguntasse alguma coisa. Porém, não me ocorreu nenhuma pergunta. Creio que ficaria ouvindo-a falar o dia todo e não questionaria nada. Nem nos nossos silêncios mais longos eu me manisfestaria. Provavelmente, ela não me conhecia tão bem quanto pensava ou talvez conhecesse demais.

Só sei que Silvia não voltou para tomar café ou passear de carro num dia ruim. Ela deve ter descido quando o sinal fechou. Quem sabe aproveitou um momento de distração de minha parte. Não sei. Só sei que sinto saudades, mesmo sem lembrar muito bem o motivo disso.

Tempos

Tínhamos um passado promissor. Mas ele queria presente e eu, futuro. Éramos opostos e isso não nos atraía, só nos jogava em direções diferentes. Eu aprendi a viver todos os tempos de uma só vez e ele ficou estacionado no tal do agora. Nos separamos e de nós só restou algumas recordações e o velho ressentimento que sempre aparece quando as coisas não terminam bem.

Um dia, muito tempo depois, nos encontramos por acaso. Conversamos por um tempo, mas não existia muita coisa a dizer. Parecíamos completos desconhecidos falando de trivialidades. Tive que pagar a conta. Era sempre eu quem fazia isso. E era triste, porque continuava querendo o melhor pra ele, mesmo depois de tudo. Ainda tínhamos um passado, mas ele insistia nessa coisa de presente e não chegava ao fim do mês. E eu continuava vivendo. Nem sempre a gente pode acreditar no que falam na televisão e esse negócio de carpe diem só funciona nos sonhos de algum escritor do século retrasado.

E lá se foi o que não era pra ser.

Um pouco mais

– Coloque um disco aí.

– Qual?

– Ah, qualquer um. Eu confio no seu bom gosto.

Com um sorriso no rosto, escolheu um dentre os vinis. Sim, era do tipo que colecionava vinis antigos. Herdou dos pais quando a mãe descobriu o CD. Ele achava os LPs mais charmosos, ainda tinha aquele chiado antes de começar a música, sabe? Ele gostava daquilo. Apesar do problema de espaço do pequeno apartamento.

O chiado… o uísque sem gelo pra ele e com pra ela.

– Quem é essa que está cantando?

– Ângela Rô Rô, conhece?

– Já ouvi falar. É uma meio louca, né?

– Louca?

– É! Meio louca, meio lésbica, meio fossa.

– Que bobagem!

– Sei lá, as músicas dela são tristes. Parecem coisa pra fins.

– E o que importa se é louca, lésbica?

– Ah, apenas referências.

– Você já parou para escutá-la? Isso é lindo.

– É meio desesperado.

Era “Gota de Sangue”, uma de suas favoritas.

– E o que não é desesperado? Sem pensar na Ângela, só ouvindo o que ela diz aí, só sentindo o que ela está cantando. Me diz, não é uma coisa linda?

– É triste.

– E existe canção de amor que seja só alegre? Existe amor feliz? Talvez haja, mas eu nunca vivi um.

– Eu nunca vivi um amor.

– Talvez seja melhor assim. Se bem que aí, você nunca vai compor uma música bonita ou escrever um livro de verdade.

– Eu não quero isso. Quero não ter que sofrer. Nem que pra isso eu morra no anonimato.

– Eu não sei o que quero. Talvez queira calma. Mas continuo me abalando com as coisas.

– Sério, essa mulher parece sofrer demais. Vale a pena?

– Às vezes sim. Pelo menos ela sente algo.

Encheu os dois copos, buscou mais gelo pra ela. Perguntou se queria guaraná. Ela cantarolou alguma coisa e disse que não, que estava bem daquele jeito.

– Você não vai colocar essa música de novo, vai?

– Vou. Até você aprender a gostar dela.

– Eu não vou gostar. Odeio essas coisas deprimentes.

– Presta atenção, porra! Ouça, feche os olhos e ouça. Com o corpo. Tire esse gelo do uísque, jogue isso fora.

Ele pegou o gelo e atirou no vaso de flores.

– Ei!

– Beba ao natural e sinta a música.

A voz rouca tomava conta de todo o ambiente. Ela sentia. E o uísque descia rasgando. Uma pontada, que dor estranha era aquela? Talvez não fosse nada, só tinha bebido demais. Estava um pouco tonta. Ele colocou a mesma música várias vezes. Os dois no chão, os copos, os cigarros acabaram, só a música restava ali, só os dois. E o mundo? Sei lá. E a dor? Existia. E a voz? Ecoava e matava aos poucos. E ela já estava cantarolando “Não tire da minha mão esse copo…”. E ele tentou se aproximar e ela deixou. E ele colocou o braço em volta do pescoço dela e ela se aproximou mais e colocou a cabeça no peito dele.

– Sabe, eu quero amar um dia.

– Você consegue, eu sei que sim.

– Não queria que doesse.

– Esteja preparada. Uma hora ou outra vai doer. Pode ser que não seja assim, mas nunca se sabe.

– Por que?

– Porque tem gente que não sabe o que fazer quando tem alguém nas mãos. E disso nascem belas canções, filmes, livros. A gente acaba se sentindo um pouco mais vivo, um pouco mais do que essa gente.

– Mas tem que ser assim?

– Não, mas os outros não entendem isso.

– Que pena…

– É…

E Ângela continuava sem parar e a garrafa não tinha mais nada. Só os dois.

Chuva

Eu não estava acostumada ao medo de chuva. Venerava tempestades. Alguns dias olhava pela janela, mas, em outros, eu aproveitava pra me molhar inteira. Minha mãe sempre brigava comigo, dizia que eu iria pegar um resfriado. E eu saía correndo em disparada para longe dos gritos dela. Aquele momento era só meu e da chuva. Resfriado passa com o tempo, mas aquela chuva não iria mais se repetir e eu não tinha medo dos raios, de ficar encharcada, da gripe, das ameaças da minha mãe, de nada.

Algumas pessoas que eu conheci naqueles tempos, tinha medo e eu desafiava a todos. Hoje em dia, não costumo sair tanto de casa pra ver a chuva de perto, olho mais pela janela do carro, pela janela do quarto, pela tela, pela janela, mas ainda vou pro meio dela. E continuo conhecendo gente que morre de medo de tempestades. São casos patológicos. Não consigo entendê-los, assim como eles não respeitam minha mania de me jogar no meio do temporal.

Acho que no meio disso tudo, uma hora eu encontro um companheiro, alguém que não tem medo de se molhar, que olhe para os raios do mesmo jeito que eu, que ache que o resfriado, a gripe, a pneumonia são meros detalhes, coisas que fazem parte do enfrentamento. Uma hora eu acho… uma hora, duas horas, qualquer hora…

Receita

Mais uma vez cá estamos. Todos muito bonitinhos, engomadinhos, engraçadinhos. Tudo é feito pra ser rido. Você tem que fazer algo para encantar. Pra que falar de dor? Queremos levezas, queremos coisas bobas.
Já chegamos pra achar graça, mesmo que não tenha, vem o riso. E é assim que a mediocridade é perpetuada.

A ideia

Pensei ter uma ideia, mas não passou de um achismo. Ouvi dizer por aí que de amor não se morre. Não morre mesmo, mas a gente sofre como o diabo quando as coisas não dão certo.
– Então não era amor.
Não sei, ninguém me deu o manual.
– Amor não acaba.
Será mesmo?
Dizem também que tristeza não mata. Tá, não mata daquele jeito mais conhecido, não acaba com o corpo, mas destrói a alma. Quer morte pior? Às vezes a gente ressuscita, outras vezes não. Só segue, muitas vezes existem partes da alma pelo caminho, as outras se perdem mesmo.
A ideia nem era essa.

Desconheço um título

“Sossega!” foi o que me disseram. “Aquiete-se, recolha-se, os malditos dias estão chegando.”. É esse final de ano, só pode. Tá todo mundo meio virado, meio atordoado, cheio de dúvidas, são os corações. Ninguém se entende, há um jeito de dor pelos cantos.

Ano cruel, se bem que os últimos anos têm sido bem estranhos. Talvez seja porque não tenha que fazer provas de final de bimestre nem ir pra natação nem fazer ballet nem levar o boletim pra minha mãe assinar. A normalidade não habita mais os meus dias. Não que eu não sofresse antes, mas era diferente, sem esperanças. Sofrer sem esperar que aquilo se resolvesse era minha melhor opção, não tinha medos na história.

Respiro fundo e tento seguir. A concentração não vem há muito tempo me visitar. Tenho uma bola de boliche entalada na garganta e ela está machucando, não consigo falar sem me molhar. Me esqueci de algumas palavras, minhas roupas estão do avesso e eu também.

Meus dias estão com cara de domingo, nublados. O tempo está emperrado. Existe um cheiro de ferrugem e de coisa guardada no ar. Queria saber como tirar tudo isso do porão. Preciso de ajuda, alguém pra carregar o baú junto comigo. O problema é que todo mundo tem seu próprio fardo, a gente não pode esperar que alguém leve o nosso peso.

Acho que as luzes de Natal reforçam um certo sangramento, é só um fio que escorre, mas intermitente. Depois vêm os fogos e tudo fica com uma cara diferente, mesmo que por pouco tempo. Os dias vão fazendo-me esquecer de tudo ou lembrar daquilo como uma coisa boa e ruim, mas sem doer, cicatrizado. O problema é que logo aparece outra coisa.

Já que não posso resolver isso agora, vou ouvir John Coltrane, andar por aí, acender um cigarro e torcer pra que ele dure 5 minutos, pelo menos.